Por quase nove minutos, a figura da noiva domina o singular panorama. O Grande Dia (2022) ganha em dramaticidade ao revestir-se de múltiplos sentidos com o Adagietto, movimento 4, da Sinfonia nº 5, de Gustav Mahler (1860-1911). Indubitavelmente uma das mais belas composições da história sinfônica, escrita por um gênio completamente arrebatado pela paixão por Alma Schindler (1879-1964), sintetiza a criação tão bem manejada pelo artista, com altos, baixos, tons marcados por nuanças e talvez aquilo tão fulcral que Mahler dizia, que a música deveria representar o universo (e todas as suas complexidades). É bom frisar, o compositor de origem tcheca casaria-se com Alma (a união, de acordo com relatos históricos, revelou-se longe da placidez).
No entanto, na performance de Liane Roditi (Rio de Janeiro, 1967), há uma construção que parece subverter possíveis leituras harmônicas e confortáveis. O próprio vestido de noiva da artista utilizado em seu matrimônio evoca um grande peso. Suas cores já não tão vibrantes se ligam a elementos da memória e esses parecem não guardar as mais otimistas reminiscências. Numa coreografia mínima, o corpo da artista por fim parece ganhar contornos de liberdade, não sem anteriores processos de conflito e dor. O desempenho de Samantha Tiussi ao piano também colabora para que a obra audiovisual mais traga inquietações e lacunas, num movimento de desestabilização, do que uma leitura/interpretação/observação de contornos lineares e esperados pudesse propiciar.
Assim, O Grande Dia serve tanto de introito à multifacetada produção da artista como talvez resuma a prática não reducionista e burilada de Roditi, que opta por tratar de assuntos que estão longe de serem simples, porém com abordagens que se distanciam de panfletos e que abdicam da literalidade. A inicial formação em dança e a recente incursão na visualidade contemporânea vem, paulatinamente, forjando um corpus de obra maduro, polissêmico e que se vale da versatilidade de linguagens e suportes, como a videoarte, a performance, a fotografia, o desenho e o tridimensional, entre outros.
Numa emergente produção, desde 2019 (ano em que inicia no Parque Lage o curso Questões prático-teóricas da pintura na contemporaneidade, com Bruno Miguel e Luiz Ernesto), o corpus de obra de Roditi tem se sedimentado – no entanto, sem conformações estáticas de formas e conceitos – num pujante hibridismo de meios, que pode ser analisado com algumas transformações nas abordagens e na materialidade dos trabalhos. Grosso modo, existem evidentes movimentos de dissolução, de construção de estranhezas ao lidar com a alteridade e o emprego do próprio corpo como tentativa predominante de diálogo.
É de certa forma reconfortante mirar as peças iniciais da artista, em especial os vídeos. Neles, podemos encontrar o elogio tão preciso e hoje paradigmático de Philippe Dubois sobre tal linguagem. “Efetivamente, a ambiguidade está na natureza deste meio de representação, em todos os níveis, a tal ponto que tudo nele acaba ganhando uma espécie de dupla face. Quando falamos em vídeo, sabemos exatamente do que estamos falando? De uma técnica ou de uma linguagem? De um processo ou de uma obra? De um meio de comunicação ou de uma arte? De uma imagem ou de um dispositivo?”1, analisa o teórico francês.
O espectador consegue, assim, perceber a mescla de frescor e simplicidade nos expedientes compartilhados nesses audiovisuais, ao mesmo tempo em que uma gramática que tem sim rigor – já que aqui não há concessão à publicidade, ao consumo desenfreado de imagens e ao solipsismo desse receptor algo alienado, algo refratário -, possibilitando, por isso, um encarar não estanque às complexidades de agora. Tal qual um Janus mitológico, com uma face projetando o futuro e a outra por detrás sem pisotear as memórias essenciais.
Despertar (2022), Cipó (2022) e, em especial, Sal (2022), desenvolvidas durante residência no Kaaysá, em Boiçucanga, litoral norte de SP, atingem um punctum, para utilizarmos um conceito barthesiano da colega linguagem fotográfica – tão bem trabalhada por Roditi, frise-se. Em Sal, esse mergulho da mulher-protagonista com pequena indumentária em preto que se funde à desconhecida escuridão/liquidez oceânica, ruidosa e indomável, traz esse âmbito de desmanche e desfazer da artista. Nesse sentido, também há versões fotográficas das obras em vídeo e peças feitas especificamente para o meio, como Hera (2022), Enterro sem Despedida (2022) e Ocultar Revelando (2023). Nesse último, já se esboça a presença do fantasmático, atestando a estranheza já comentada anteriormente, mas que afasta uma inicial leitura próxima ao funesto e lança a peça mais para o enigma, o mistério, que a deixa longe de configurações impermeáveis e muito cerradas nelas mesmas.
A série O Sustento comprova o trânsito da obra de Roditi pelo incomum e que, justamente, encontra desdobramentos por meio da linguagem do tridimensional. Solitário (2023), apresentado na coletiva Corpo: Entre Suporte, Gesto e Dispositivo, exibida no espaço experimental Fonte no mesmo ano, centra o apelo nessa corda de sisal a medir 9 metros, em que uma pedra de quartzo é sustentada a 1,60 metro do chão. Nessa dualidade entre telúrico e evanescente, material e imaterial, terreno e elevado, firme e fluido etc., a instalação requer um público ativo para superar uma primeva estranheza ou repulsão. A artista explora a linha, como em um desenho que invade o espaço e reivindica a existência, ora parca ora robusta, em outros experimentos para além do bidimensional, como Lilith (2024) e Fiando (2023). Nesse último, prendedores e fios de cabelo anunciam uma materialidade não desprezada em trabalhos a seguir.
Ao mesmo tempo em que há essa imersão no espaço e é clara a importância do fenomenológico, uma série recente, Corpo em Movimento (2024), lida com tais vetores poéticos e utiliza as potencialidades de linguagens bidimensionais, como o desenho. Por meio do pastel seco sobre o papel Canson, com alturas que podem medir até 60 cm, o gesto da artista na construção desses vórtices, desses buracos negros em escala intimista, provoca o público numa direção tanto fugidia quanto implacável, numa dualidade entre ser atraído e repelir. Muito promissor o desenvolvimento último de peças da série, com o emprego do carvão e da escala 1:1.
Por fim, há a fase de obras realizadas faz pouco em que Roditi envolve não sem risco o próprio corpo ou partes dele com materiais variados. Cabelo e tranças não faltam, relevantes na performance Enquadramento (2023), na fotografia Erva (2024), no objeto Dois Turnos (2024) e na videoinstalação Moeda de Troca (2024). É bastante evidente a crítica ao cerceamento do feminino, seja por silenciamento, objetificação e outros elementos caros à pesada estrutura da sociedade patriarcal. São todos testemunhos pungentes dessa luta diária liderada por mulheres cotidianamente, contudo uma fotografia aponta desdobramentos promissores nessas vertentes multifacetadas da artista.
Cercamento (2023) foi produzida no período da Residência Afefé, em Ibicoara, território da Chapada Diamantina na Bahia. No trabalho, pode haver um prenúncio de vontade da artista em trabalhar mais fortemente as conexões entre a paisagem e o feminino e, apesar do registro básico, a construção da obra parece tanto sugerir questões geográficas/ecológicas/urbanas. E há o desejo de falar da condição social e simbólica da forte figura, de rosto envolto por corda, também presa a algo que não sabemos no extracampo. Terra, mato e antenas, numa iminência de progresso que se revela algo assustador e à espreita, comportam essa faceta enigmática da obra de Roditi. “Os corpos são diferenças. São, portanto, forças”2, escreve Jean-Luc Nancy, em pensamento que pode ser estendido à produção nada olvidável e transbordante de Liane Roditi.
Mario Gioia, agosto de 2024
1. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 73
2. NANCY, Jean-Luc. 58 indícios sobre o corpo. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 19, n. 1 e 2, p. 47, jan./dez. 2012.