Por Leonardo Ramadinha
Faz-se um círculo e o que era fim, agora é início. Num momento de dor, é preciso despedir de quase tudo e deixar para trás o que não é âmago, tudo o que não é mater. É preciso despir de tudo. Não há amarras, roupas, não há mais nada que não seja essência. A artista está nua. Viva e morta, a artista está completa.
Da nova vida à morte, da pureza à paixão.
Há uma tensão na paisagem. Cores, formas, perfumes se foram. As flores que ficaram pelo caminho, hoje se fazem histórias. Delicadeza e fragilidade na efemeridade da vida. É sagrado que profana, é vida que morre para renascer. Luz e sombra que habitam corpo e alma.
Alma que experimenta, corpo que conduz.
Corpo que é tempo e espaço na vida. Corpo que é templo, Sagrado Feminino. Liberto, exposto, entregue, que em movimentos livres se autofecunda em metáforas. Prazer e dor, em transe, se entrelaçam numa alegoria vital. Fluido e líquido; é corpo que se banha de vida e desenha para a alma.
Eis a nova primavera, onde então as flores deixadas pelo caminho são as marcas deixadas na pele da arte.
Faz-se um círculo e o que era início, agora é fim.
Uma vez, outra vez, ainda.
Série: Uma vez, outra vez, ainda
Título: O tempo que o tempo tem
Performance e filmagem: Liane Roditi
Sonorização: Batimentos cardíacos da artista – edição Dalton Coelho
Duração: 4:44
Série: Uma vez, outra vez, ainda
Título: No sol pleno ou a meia-sombra
Performance e filmagem: Liane Roditi
Cenário: Liane Roditi e Noni Levinson
Tratamento vídeo: Claudia Ramadinha
Duração: 2:39
O projeto
O projeto nasceu num momento de dor e reclusão da artista. O desejo de expressar sobre ciclos de vida no universo feminino utilizando o corpo como fio condutor, resultou numa performance intensa de movimentos corporais, realizada no chão de um espaço limitado gerando uma tensão entre nascimento e morte, corpo, tempo e espaço. As flores simbolizam o feminino, e num primeiro momento estavam presentes na performance. Com o tempo, o trabalho ficou mais forte e as flores funcionaram apenas como objeto de criação. O ato, apenas com o corpo nu, entregue, exposto e a repetição de movimentos com continuidade, como uma autofecundação, representam as flores e os ciclos. A dualidade de expressões e movimentos está presente em todo o projeto. Rosto sereno em oposição a movimentos fortes, tensos e marcantes.
Com o desenrolar do projeto surgiu a ideia de pintar telas com o próprio corpo. Neste novo ato, a tinta preparada com cor de sangue coagulado está em uma bacia de ágata, tão usada por mulheres ao longo da história, tanto em partos como em enfermarias de guerras, simbolizando novamente os ciclos de vida. A dualidade se mostra na serenidade da expressão e delicadeza de gestos, em contraponto à gestos mais bruscos e a sensação gerada pelo que parece ser um banho de sangue. A artista está novamente em um espaço limitado, desta vez totalmente fechado, onde se banha com a tinta e pinta a tela com o próprio corpo.
Esse trabalho perpassa por várias questões do universo feminino. A cada ciclo vivenciamos a morte e o renascimento. Ao longo da vida isso ocorre o tempo todo e para a mulher (na maioria das vezes) de forma sistemática a cada mês por um longo período. Os rompimentos e recomeços por vezes são dolorosos. A gestação e vida que surge do ventre são intensos. Prazer e dor se misturam. No desdobramento, a questão da violência contra a mulher aparece com mais intensidade.
Durante muitos meses guardei flores e folhas secas pensando em usá-las em algum trabalho. Nesse projeto as usei nas primeiras filmagens e juntei com flores que produzi com papel de seda. Testei várias formas. Usei pétalas de rosas frescas de diversas cores para ver o efeito. Por vezes usei os caules, ora somente as pétalas. Ao fazer os movimentos com as flores e caules de rosas com espinhos me machuquei algumas vezes.
Por fim, me livrei dos acessórios e entendi que tudo isso foi parte do processo de construção da performance. Me libertar de tudo foi o que aconteceu de mais acertado. O corpo nu e os movimentos falam por si só. Meu corpo também sofreu sem as flores. Os movimentos corporais repetitivos no piso de madeira, sem roupa, em dias quentes ou frios, além dos hematomas, me possibilitaram trabalhar ciclos bons e ruins que vivi e ainda vivo.
No processo de criação e filmagem dos vídeos fiquei sozinha em meu ateliê. Momento de concentração e de busca de sentimentos expressos nos movimentos feitos no chão. Mesmo nos dias de experimentação e desenvolvimento da performance trabalhei nua. Esse processo foi fundamental para atingir esse resultado. Precisava estar sempre presente com o que queria expressar e não havia lugar para roupas nesse ciclo.
Durante o processo ouvi a música Lifestream do Dream Machine e me encantei. Com ela fiz vários testes e movimentos na busca por expressar o que queria. Mas foi quando o Ramadinha me apresentou a música eletroacústica da Vânia Dantas Leite que tudo mudou. Passei por uma catarse. Foi angustiante. Chorei um dia inteiro. Coloquei fantasmas para fora. Finalmente me acalmei na beira do mar. Depois disso ficou tudo muito claro. Sabia o que queria e o que estava fazendo. Desabrochei. Tudo fluiu. E a música da Vânia me acompanhou em todas as performances. Já não me angustiava mais. Se tornou parte do processo. Foi libertador. A partir daí a criação e as performances passaram a ser gravadas com ela tocando sem parar. Eu ficava numa espécie de transe e saia sempre exausta e feliz. Muito feliz.
Noni Levinson, grande amigo e fotógrafo, acompanhou o processo desde o início. Noni vestiu vários chapéus no processo todo. Foi diretor, fotógrafo, contrarregra, TI e muito mais! Fez mágica nos espaços que tínhamos para trabalhar. Usou e abusou de talento e criatividade para fazer minhas ideias acontecerem. Me apresentou ao Leonardo Ramadinha, fotógrafo renomado, que viu potencial no projeto e iniciamos um trabalho em conjunto. Um tempo depois convidei a Deborah Levy Epstein, artista visual e bailarina com vasta experiência em performance, e amiga de longa data, para compor a equipe. Finalmente, para completar nosso time, Noni me apresentou à Sabrina da Paz, fotógrafa e bailarina extremamente sensível.
Ramadinha, com seu talento e experiência, liderou as reuniões com uma orientação rica em conteúdo, e com um olhar artístico único. As reuniões seguiram semanalmente por um ano. A participação de todos foi fundamental e cada vez mais entendo que não há nada como trabalhar em colaboração unindo talentos diversos.